- Introdução
O
pais entrou desde a eleição do presidente João Lourenço numa rota rumo a
institucionalização das autarquias que não tem volta. Falar de autarquia em
Angola, hoje, já é falar do assunto que
mais presença faz nas bocas, nas reuniões e em qualquer outra parte em que haja
algum assunto para se discutir, eu iria mais longe, está na moda falar das
autarquias.
Fora
este pequena introdução, o que pretendo mesmo neste pequeno artigo é falar do
modelo de tutela administrativa subjacente na proposta de lei da tutela
administrativa, uma das seis leis do pacote legislativo autárquico que está
neste momento em consulta pública, antes de passar pelo crivo da Assembleia
Nacional.
Procurarei
neste pequeno artigo discorrer sobre o que doutrina define como sendo a tutela
administrativa, como a classifica, e depois fazer um enquadramento doutrinário do
modelo de tutela contido na proposta em consulta.
- Conceito
A
tutela administrativa segundo Freitas do Amaral
consiste “no conjunto dos poderes
de intervenção de uma pessoa colectiva pública na gestão de outra pessoa
colectiva, a fim de assegurar a legalidade ou o mérito da sua actuação”[1]. Carlos Feijó (2001)
considera que por se tratar de uma intervenção de uma pessoa colectiva pública
na gestão de outra pessoa colectiva, isto por si só constitui já um limite a
descentralização administrativa e no contexto dessa nossa abordagem um limite a
autonomia local corporizada pelas futuras autarquias locais.
Não
menos importante também é dizer que sendo o nosso estado um estado unitário
como estipula a constituição no seu artigo 8 não é defensável a implementação
das autarquias locais, enquanto uma das entidades que corporizam o poder local,
com ausência de tutela pois como nos alerta Feijó “a ausência de tutela
administrativa do Estado, no âmbito de um estudo unitário, sobre poder local
autónomo é um meio - caminho para a federalização do país”.
- Classificação da tutela
A
tutela administrativa pode ser classificada quanto ao seu fim e quanto ao seu
conteúdo.
Quanto
ao fim a tutela administrativa classifica-se em:
- Tutela de legalidade
- Tutela de mérito
A
tutela de legalidade é a que visa
controlar a legalidade das decisões das entidades submetidas a tutela, ou seja
a entidade tutelada.
A
tutela de mérito é a que visa
controlar o mérito das decisões da entidade tutelada.
Mas
na prática o que é tutela de legalidade e o que é tutela de mérito? E como
distinguir uma da outra?
Imaginemos
que uma vez institucionalizadas as autarquias, a autarquia de Luanda por
exemplo decida criar impostos locais para tributar os munícipes. A intervenção
do executivo para averiguar a legalidade desta decisão, é uma tutela de
legalidade pois o objectivo será apurar a conformidade desta decisão à lei, se esta
decisão está ou não conforme à lei.
Mas
já não será o caso quando se tratar da intervenção do executivo para controlar
se a decisão da autarquia é ou não conveniente, se é ou não oportuna, independentemente de ser
ou não legal. Ai se estará perante uma tutela de mérito pois o objectivo será
averiguar questões que não têm a ver com a legalidade, mas com outras questões.
Quanto
ao conteúdo a tutela administrativa, seguindo de perto os ensinamentos de
Freitas do Amaral, desdobra-se em cinco
modalidades:
- Tutela integrativa
- Tutela inspectiva
- Tutela sancionátoria
- Tutela revogatória
- Tutela substitutiva
- Tutela intregrativa
A
tutela integrativa é a que consiste no poder de autorizar ou aprovar os actos
da entidade tutelada. Neste sentido teremos dentro da tutela integrativa dois
tipos de tutela: a tutela integrativa a
priori e a tutela intergativa a
posteriori. A primeira é a que consiste em autorizar a prática de actos da
entidade tutelada, e a segunda é a que consiste em aprovar actos da entidade
sob tutela.
Este
tipo de tutela levanta dúvida em termos de conceitos, pois o que é uma
autorização e o que aprovação no âmbito deste estudo? E como distinguir uma da
outra?
A
distinção consiste nisto: quando um acto está sujeita a autorização significa
que a entidade tutelada não pode praticar o acto sem primeiro obter a devida
autorização; se o acto estiver sujeito a aprovação, a entidade tutelada pode
praticar o acto antes de obter a aprovação, todavia não pode pô-lo em prática,
não pode executá-lo, sem que esteja aprovado.
Por
outras palavras diriamos que na tutela administrativa integrativa a priori (autorização) “o exercício da
tutela administrativa é condição do exercício da competência da entidade
tutelada[2]” e na tutela integrativa a posteriori o exercício da tutela “é
condição para dar executoridade do acto praticado pela entidade tutelada[3]”
- A tutela inspectiva consiste no poder de fiscalização dos órgãos, serviços, documentos e contas da entidade tutelada ou seja no poder de fiscalização da organização e funcionamento da entidade sujeita a tutela.
- A tutela sancionatória consiste no poder de aplicar sanções por irregularidades que se tenha detectadas na entidade tutelada.
- A tutela revogatória, por sua vez, é o poder revogar os actos administrativos praticados pela entidade tutelada.
- A tutela substitutiva é o poder da entidade tutelar de suprir as omissões da entidade tutelada, praticando, em vez dela e por conta dela, os actos que forem legalmente devidos.
- A tutela administrativa na Constituição da República de Angola
Da
leitura que se pode fazer do artigo 221
da CRA é possível concluir que o legislador constituinte evitou consagrar no texto constitucional a
tutela de mérito, ou seja a tutela de mérito não encontra acolhimento na
constituição angolana. O nº 2 do
referido artigo diz “ a tutela administrativa sobre as autarquias locais
consiste na verificação do cumprimento da lei por parte da dos órgãos
autárquicos (...)”. este enuciado é uma consagração expressa e inequívoca da
tutela da legalidade. Por isso seja qual for o fundamento que proponente de lei
use para a inclusão da tutela de mérito na realidade juridico-administrativa
angolana, irá sempre embater contra a constituição e ser declarada
inconstitucional pelo tribunal constitucional.
Nos
termos ainda do mesmo artigo o órgão tutelar é executivo, ou seja é o presidente
da república tendo em conta que o actual sistema político consagra um executivo
pessoalizado, e não colegial como o era na lei constitucional de 1992.
O
número três do mesmo artigo estabelece, em nossa opinião, limite a dissolução
dos órgãos autárquicos, ao condicioná-la ao grau de gravidade das acções ou
omissões praticadas por estes órgãos. A dissolução fica assim dependente do
grau de ilegalidade, só havendo dissolução caso haja ilegalidade graves nas
acções dos órgãos autárquicos.
O
número 4 do artigo 221 estabelece as garantias que as autarquias têm diante do
órgão tutelar, no caso o executivo. Essa garantia resume-se em impugnar
judicialmente as acções que órgão tutelar que considere serem ilegais. Esta
garantia também é reforçada pelo artigo 216 que estabelece as garantias das
autarquias, neste artigo entendemos que se estabelece as garantias fora do
âmbito da relação jurídica tutelar, já que as garantias não podem ser vistas
apenas pelo foco da relação tutelar.
- A tutela administrativa na proposta de lei da tutela administrativa sobre as autarquias locais
Uma
vista geral da proposta de lei oferece-nos a
priori os “traços característicos” da tutela que teremos sobre as
autarquias locais, caso passe pela Assembleia Nacional sem sofrer alterações
substanciais. Ela será, quanto ao fim, uma
tutela da legalidade (art. 3º), e também de mérito (art. 17), quanto ao
conteúdo será uma tutela inspectiva (art. 4), sancionatória (art. 8),
integrativa (art. 15), subtitutiva (art. 18 e o nº 3 do art. 15) e a tutela
revogatória (art. 17)
A
tutela inspectiva prevista na proposta é feita através de inspecções,
inquéritos e sidicâncias (nº 1 do art. 4) que acreditamos que venha a ser feito
pelo MATRE ou pelo MAPTESS ou conjuntamente pelos dois por delegação de poderes
do Presidente da República.
A
tutela integrativa é uma tutela a posteriori feita por meio de ratificação
tutelar (art. 15 e 16) e pela natureza dos documentos sujeitos a atificação
serão, em nossa opinião, os ministérios das Finanças, da Economia e
desenvolvimento, e o do urbanismo e habitação os titulares desse poder depois
da competente delegação de poderes.
As
tutelas de mérito, substitutiva e revogatória são consagradas na proposta a
título excepcional e transitório. Resta-nos aqui saber até que ponto a inclusão
de norma a título excepcional e transitório pode ficar imune a
inconstitucionalidade. O que defendemos é que os deputados solicitem um
controlo preventivo junto do TC caso pretendam afastar a
constitucionalidade da norma que fere a constituição e caso não o
consigam antes da aprovação, podem sempre fazê-lo a posteriori através do controlo sucessivo.
Dos
tipos de tutela reconhecidos a nivel doutrinal, a proposta fez questão de usar
todos, o que significar dizer que teremos, se aprovado assim como está, um
regime de tutela administrativa sobre as autarquias locais muito intenso, e que
vai de certa forma beliscar o princípio da autonomia local consagrado no artigo
214 da Constituição.
Esse
regime de uma intensa tutelada administrativa na primeira fase da implementação
das autarquias é defendido pelo Doutor Feijó que já o perspectivava em 2001 nos seguintes termos:
“Assim, numa primeira fase, a
tutela administrativa poderá ser mais intensa para assegurar e proteger melhor
bens como a unidade nacional e o desenvolvimento harmonioso do País. Na verdade
um país que sai de um sistema centralizado e sem tradição municipalista para um
sistema descentralizado e autónomo não deve seguir outra opção[4].”
Independentemente
do bondade do doseamento da tutela por fase defendido pelo doutor Feijó,
entendo que o respeito pela Constituição deve estar acima de qualquer intensão
legislativa ou administrativa, por isso é de afastar a tutela de mérito e a
tutela revogatória da proposta de lei.
BIBLIOGRAFIA
- ANGOLA. Constituição (2010). Constituição da República de Angola: promulgada em 5 de Fevereiro de 2010. Luanda. Imprensa Nacional – EP, 2010.
- FEIJÓ, Carlos Maria. A Tutela Administrativa sobre as Autarquias Locais (Perspectivas futuras). Disponível em
- FREITAS DO AMARAL, Diogo. Curso de Direito Administrativo. Vol. I. 3ª edição
- MATRE. Proposta de Lei da Tutela Administrativa sobre as Autarquias Locais. Disponível em www.mat. gv.ao
[2] FREITAS DO AMARAL, Diogo. op.
cit. p. 885.
[3] Idem.
[4] FEIJÓ, Carlos Maria. A Tutela
Administrativa sobre as Autarquias Locais (Perspectivas futuras). Disponível em
https:// library.fes.de/pdf-files/bueros/angola/hosting/feijo.pdf e também https://carlosfeijo.co.ao/site/2001/tutelaadmincf/
acesso em 23/06/2018.