quarta-feira, 27 de novembro de 2013

A Constituição da relação Jurídica de Emprego na Função Pública em Angola (II)


Na primeira parte falei, ainda que de forma não muito desenvolvida, das fontes da relação jurídico-laboral pública, isto é com o Estado; nesta, também breve abordagem, proponho-me a falar da natureza do vínculo laboral que se estabelece com o Estado.
Ao nos tornarmos funcionários públicos criamos um vínculo jurídico com o estado, este passa a ser o nosso patrão e nós seu empregados, estabelece-se entre nós uma relação em que de um lado estamos nós com os nossos direitos e deveres e do outro lado o estado também com os seus deveres e direitos, enquanto pessoa colectiva pública. Mas que tipo de vínculo jurídico estabelecemos com o Estado? Refiro-me sobretudo aos funcionários públicos ou seja aos trabalhadores da administração directa do Estado nomeadamente os da administração central e local e os trabalhadores dos institutos públicos que, mesmo sendo autónomos e fazendo parte da administração indirecta, regem-se pelas normas aplicáveis a administração central e local. Excluem-se dessa abordagem os trabalhadores das empresas Públicas (ENANA. TAAG, TPA, ENE, etc) pois como se sabe eles inserem-se no âmbito da LGT (Lei Geral do Trabalho) como estipula a alínea a) do artigo 2º da referida lei.

Sabe-se que no âmbito privado a lei geral estabelece um período de tempo em que o vínculo entre o trabalhador e a entidade empregadora, é provisório e probatório e só se consolida depois desse período que se denomina período de experiência, onde as obrigações das partes ainda não são tão fortes pois a relação esta em fase de consolidação, está em fase de transição para um vínculo mais forte e seguro. No âmbito laboral publico a coisa não difere muito. Depois de estabelecida relação, o trabalhador é submetido a um período probatório que dura 5 anos[1] até se converter o vínculo provisório em vínculo definitivo.
Até 1996 período probatório era de 1 ano e o vínculo laboral entre o trabalhador e o Estado era provisório. Este convertia-se em vínculo definitivo independentemente de qualquer formalidade, para aqueles que o estabeleciam através da nomeação, decorrido um ano. Os que estabeleciam a relação através do contrato de provimento e o de trabalho, o seu contrato com o estado tinha a duração de um ano renovável por igual período. Quem celebrava contrato de provimento com o estado adquiria a qualidade de agente administrativo (nº 2 do artigo 16 do decreto 25/91).

Em 1996 o governo através do decreto 22/96 de 23 de Agosto, organizou o quadro pessoal da Administração Pública através do:

ü  Provimento provisório,

ü  Provimento definitivo,

ü  Pessoal eventual e

ü   Pessoal assalariado.

Esta organização do pessoal da administração pública visava sobretudo saber que trabalhadores podem ser vistos como trabalhadores do quadro de pessoal da Administração Pública e os que não eram. Assim é que os providos pela modalidade de provimento definitivo eram os trabalhadores que já se podiam dar ao luxo de considerarem-se funcionários públicos (alínea b) do art. 1) pois o seu vínculo com o estado já não era provisório mas sim permanente e geralmente eram ou são os que já tinham passado a fase probatória, e que requeriam o provimento definitivo.

Esse decreto centrava-se essencialmente no vínculo jurídico que se criava com o Estado, não trazia nenhuma novidade em relação formas de criação deste vínculo com o estado ou seja para todos os efeitos a nomeação, o contrato administrativo de provimento e o contrato de trabalho continuavam sendo como os únicos modos de constituição de relação jurídico laboral com o estado, apenas dizia que esses modos todos de constituição da relação jurídica tinham carácter de provimento provisório e todo o pessoal contratado na base contratual eram pessoais com o estatuto de pessoal eventual (os contratos administrativos de provimento) e assalariado (os do contrato de trabalho a termo) estes últimos regidos pela lei geral do trabalho ou seja por uma lei do domínio do direito privado. Deste modo pode ver-se que as necessidades permanentes da Administração Pública eram asseguradas pelo pessoal do quadro ou seja aqueles que já haviam adquirido o estatuto de funcionário público[2].

A partir de 23 de Maio de 2011 com a entrada em vigor do decreto presidencial 104/11 o contrato administrativo de provimento passou a ser o regime regra da constituição da relação jurídica laboral com o Estado (art. 9) significa isto dizer que todos os trabalhadores que concorreram a uma vaga no concurso público realizado ano passado ou neste, não são ainda considerados funcionários públicos mesmo já tendo ingressado na função pública, para serem considerados funcionários públicos e serem pessoal do quadro da função pública terão de esperar durante cinco (5) anos, que correspondem ao período probatório, e serem positivamente avaliados anualmente durante esse período. Por enquanto são considerados de agentes administrativos.



[1] De lembrar que o período de 5 anos vigora desde  Maio de 2011 com a aprovação pelo presidente da República do decreto presidencial 104/11; anteriormente o período probatório era de um ano nos termos do decreto 25/91 artigo 7 depois passou para 3 anos nos termos do decreto 22/96 artigo 2 e agora 5 anos nos termos do artigo 9 do decreto presidencial supracitado.
[2] De notar que muitos se consideram funcionários públicos, mas na realidade funcionário publico é só o pessoal do quadro ou seja aqueles cujo o vínculo com o Estado é um vínculo definitivo.

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

A Constituição da relação Jurídica de Emprego na Função Pública em Angola (I)


No nosso pais muitas são as pessoas que desconhecem  o modo como se constitui as relação jurídica laboral com o Estado, parte desses pessoas estão há  muito tempo na Função Pública  e ainda assim  desconhecem o tipo de vínculo que o une ao Estado, por isso importa, e é minha obrigação enquanto jurista e também funcionário público, fazer uma breve abordagem desse assunto, pois acredito que dessa forma exerço a cidadania e ajudo os meus concidadãos a criarem ou aumentarem a cultura jurídica.
Falarei de questões gerais da Administração Publica e de questões específicas do Sector no qual estou inserido que é exactamente o sector da Educação.

Nos termos dos artigos 6 da lei 17/90 de Outubro e 3 do decreto 25/ 91 de 29 de Junho[1]  a relação Jurídica de Emprego com o Estado constitui-se através de acto administrativo, por contrato, podendo este último ser contrato administrativo de provimento ou contrato de trabalho. A partir destas disposições nota-se logo que a constituição da relação jurídica laboral faz-se através de uma das formas de manifestação do poder administrativo do Estado que são exactamente os actos administrativos e os contratos administrativos.  
A nossa lei sobre o procedimento da Actividade Administrativa define o acto administrativo como sendo “as decisões dos órgãos da Administração que ao abrigo de normas de direito público visem produzir efeitos jurídicos imediatos numa situação individual e concreta”[2]. Essa definição não foge do conceito doutrinário que nos é dado por Freitas do Amaral segundo o qual  é o acto jurídico unilateral praticado, no exercício do poder administrativo, por um órgão da Administração ou por uma entidade publica ou privada para tal habilitada por lei, e que traduz uma decisão tendente a produzir efeitos jurídicos sobre uma situação individual e concreta”[3]
Nesta ordem de ideia a nossa lei sobre a relação Jurídico-laboral na Função Pública ao estabelecer a nomeação como um dos modos de constituição dessa relação jurídica e ao defini-lo como um acto unilateral da Administração pelo qual se preenche um lugar do quadro de pessoal da Administração Pública, está de outro modo  a dizer que a relação jurídica de emprego na função pública se constitui através de um acto administrativo a que designaremos nomeação.
A nomeação como acto administrativo gerador da relação jurídica laboral entre o Estado e o particular desdobra-se, nos termos deste decreto, em nomeação por tempo indeterminado e nomeação em comissão de serviço. A primeira assemelha-se aos chamados contratos por tempo indeterminado, no que refere a duração uma vez que o contrato distinguir-se-á sempre daquela pelo seu caracter bilateral.
A nomeação, tanto a por tempo indeterminado como a em comissão de serviço, aparecem sempre pela forma de despacho. Dito de outro modo o despacho de nomeação é por excelência a forma deste acto administrativo. A título de exemplo, todos os professores depois de recrutados e selecionados nos termos do Decreto Presidencial 102/11 estabelecem o vínculo jurídico laboral com o Estado através de despacho de nomeação do Governador da província no caso dos professores do ensino primário e despacho do Ministro no caso dos professores do ensino secundário (art. 15 do Decreto 3/08).


[1]É importante  salientar aos leigos em direito que na designação da data do diploma legal constam apenas o dia e o mês pois o ano são os dois dígitos que estão depois da barra. Neste particular também é importante dizer que  outros países países lusófonos como Portugal, Cabo Verde, Moçambique há muito que abandonaram a utilização de apenas dois algarismos do ano. Eles entendem que para maior compreensão é necessário utilizar as algarismos todos referentes ao ano seja neste caso designariam decreto 25/1991 de 29 de Junho. É já é costume entre nós algumas instituições (tribunal Constiitucional) utilizarem essa nova forma.
[2] Artigo 63 da Decreto-Lei 16-A/95 de 15 de Dezembro.
[3] AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, volume II, Coimbra, 2001

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

A FORMA JURÍDICA DOS ACTOS DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA DE ANGOLA


A forma dos actos de entidades tanto Judiciais  (acórdãos, sentenças e despachos), legislativos (leis, Resoluções,) bem como das entidades administrativas (decretos, decretos leis, despachos, deliberações) é uma das questões jurídicas  pelas quais nutro um grande interesse. Vou nesse artigo falar mais uma vez, tal como já o tinha feito, desses actos que podemos encontrá-los também na ciência da legislação.

Como todos os juristas angolanos sabem, ou pelos menos deviam saber,  entramos num novo sistema de governo desde 2010, ano da aprovação da nova Constituição, deixamos o sistema o Semipresidencialista  e passamos ao Presidencialismo ou como o chamam os mentores desse sistema angolano suis generis, presidencialista-parlamentar, e com ele veio também a mudança da designação dos actos administrativos do titular do poder executivo para o nosso caso o Presidente da República.

Até Fevereiro de 2010 existia ainda a figura do Governo que, a par do Presidente da República, da Assembleia Nacional (Parlamento) e os Tribunais, formavam os órgãos de soberania do Estado Angolano (art. 53 da Lei Constitucional).  Esta figura foi extinta com a entrada em vigor a partir de 5 de Janeiro da nova Constituição, que estabelecia no artigo 105 a existência de apenas três órgãos de soberania (Presidente da República, Assembleia Nacional e os Tribunais).O governo até a entrada em vigor da Constituição era o órgão executivo do Estado Angolano (art. 105 da Lei Constitucional) tinha dupla responsabilidade, perante o Presidente da República e perante a Assembleia Nacional.

Tudo isto que foi aflorado no parágrafo anterior é para dizer que todos os decretos publicados depois do dia 5 de Fevereiro pelo Governo deixaram de ter a simples designação de Decreto para passarem a designar-se Decreto Presidencial pois como reza o artigo 108 da Constituição da República de Angola, o presidente da Republica é o titular do poder executivo da Estado. Há aqui aquilo que alguns constitucionalistas chamam de pessoalização do poder Executivo na figura do presidente da Republica que não mais é um órgão colegial, mas um órgão singular auxiliado por um órgão colegial (conselho de ministros) sem poder decisório, que apenas se limita a apreciar as questões e depois deixar que o presidente decida. o engraçado é há ainda juristas nesta nossa Angola que não perceberam isto continuam a escrever simplesmente Decretos , dando a ideia de que se trata de um acto do anterior detentor do poder executivo quando na verdade se trata de decreto presidencial, esta ultima que até a entrada em vigor da nova Constituição era forma do actos  do presidente da República enquanto chefe de Estado. À título de curiosidade o último decreto publicado pelo governo ora extinto foi o decreto 4-A/10 que apesar de ter a uma data (8 de Fevereiro de 2010) posterior a da publicação da Constituição foi visto e aprovado muito antes da entrada em vigor da Constituição.

Os artigos 125 e 137 da CRA (entenda-se Constituição da República de Angola), estabelecem a forma que devem tomar os actos (sejam eles políticos, legislativos ou administrativos) do Presidente da República e dos Ministros seus auxiliares.

Assim sendo revestem as seguintes formas os actos do presidente da República de Angola:

1.      Decreto legislativo presidencial

2.      Decreto legislativo presidencial provisório

3.      Decreto presidencial

4.      despacho presidencial

Podem ainda tomar as seguintes formas decorrentes da sua qualidade de Comandante em Chefe da forças armadas:

1.      Directiva

2.      indicação

3.      ordem

4.      despacho do Comandante em Chefe

Reveste a forma de Decreto legislativo presidencial:

· A orgânica e a Composição do Poder executivo (ex.: Decreto legislativo Presidencial 1/10 de 5 de Março, que estabelece a organização e funcionamento dos órgãos essenciais auxiliares do Presidente da República)

Revestem a forma de Decreto legislativo presidencial provisório:

·  qualquer matéria que não seja da reserva legislativa absoluta da Assembleia nacional e que verse sobre o Orçamento Geral do Estado.

Revestem a forma de Decreto presidencial:

a)        Convocação das eleições (Ex.: Decretos Presidenciais nº 93 e 94/12 ambos datados de 24 de maio de 2012 sobre a Convocação das eleições Gerais de 2012)

b)       Nomeação dos magistrados Judiciais dos Tribunais Superiores de Angola;

c)       Nomeação dos magistrados do Ministério Público (Procurador Geral, Vice-Procuradores e Adjuntos do Procurador-geral da República, bem

como os Procuradores Militares);

d)       Nomeação e exoneração do Governador e dos Vice-Governadores do Banco Nacional de Angola;

e)       Nomeação e exoneração dos Governadores e os Vice-Governadores Provinciais;

f)        Convocação de  referendos;

g)       Declaração do estado de guerra e fazer a paz, ouvida a Assembleia Nacional;

h)       Indulto e comutação de penas;

i)         Declarar o estado de sítio e o de emergência;

j)        condecorações e títulos honoríficos;

k)       Nomeação dos membros dos Conselhos Superiores das Magistraturas;

l)         Designação dos membros do Conselho da República e do Conselho de Segurança

Nacional;

m)      Orgânica dos Ministérios e o regimento do Conselho de Ministros;

n)       regulamentos necessários à boa execução das leis (Ex.: Dec. Presid. 102/11de 23 de Maio, etc.)

o)       Nomeação e exoneração dos embaixadores e designação dos enviados extraordinários;

p)       Nomeação e exoneração do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas Angolanas e do Chefe do Estado-Maior General Adjunto das Forças Armadas;

q)       Nomeação e exoneração do Comandante Geral da Polícia Nacional e dos 2.ºs Comandantes da Polícia Nacional.

 Revestem a forma de despacho presidencial:

·  Os actos administrativos do presidente da República. Exemplos: Despacho Presidencial nº 58/13 de de 26 de Junho entre outros dos mais recentes.)

Já os Ministros de Estados e ministros, os seus actos (art. 137 CRA) tomam a forma de:

· Decretos executivos que podem ser singular ou conjunto quando assinado emitido e assinado por mais de uma entidade.

· Despachos.

Espero ter ajudado a compreender mais sobre a forma dos actos jurídicos do titular do poder executivo angolano e dos seus auxiliares.

 

Um abraço.

 

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Reforma da justiça em Angola

Há muito que se vem falando da necessidade de reformar a justiça em Angola, tendo-se, há quase 10 anos, criado uma comissão encarregue de criar essa reforma. A comissão está a preparar uma nova lei de organização judiciaria e na passada Terça feira, 13, apresentou o projecto de lei aos magistrados judiciais e do ministério publico, estando também no seminário de apresentação ilustres  jurisdição, políticos e advogados.
Em relação ao referido projecto de lei, vai reformar a justiça pois deixaremos de ter em vigor  a lei 18/88 de 31 de Dezembro, que estabelece um sistema de justiça denominado sistema unificado de  justiça que tem vigorado há 24 anos. O projecto traz muitas novidades a começar pela nova estrutura dos tribunais comuns que ao contrario das anteriores divisões em tribunais municipal, provincial e supremo (art. 6 da lei 18/88) estabelece novas divisões concretamente tribunais de comarca, tribunais da relação e tribunal supremo. Essa nova divisão e hierarquia dos tribunais é muito parecida com a que existe na organização judiciaria portuguesa, por isso não é demais a pergunta será que não fizemos um copy e paste? Se é copy e paste ou não a verdade é que em direito não ha muito que inventar tudo já está aí nos modelos disponibilizados pelo direito comparado.
A constituição da Republica de Angola estabelece no seu artigo 176 n 2 " O Sistema de Organização e Funcionamento dos Tribunais compreende o seguinte: a) uma jurisdição comum encabeçada pelo Tribunal Supremo e integrada igualmente por Tribunais da Relação e outros Tribunais." Assim sendo a aprovação desta lei constitui um imperativo da constituição enquanto lei suprema do estado angolano uma vez que a constituição impõe ao legislador ordinário uma nova organização judiciaria em que haja também os tribunais da relação, tribunais estes que no sistema unificado nunca chegaram a existir e que eram reclamados por muitos juristas e advogados angolanos.
Radiografando a nova divisão e hierarquia dos tribunais comuns teremos os tribunais de comarca que serão os tribunais de primeira instancia, cuja área de jurisdição serão os municípios podendo abranger mais de um município, como provavelmente será na província capital em que terá apenas 4 tribunais
de comarca (Cacuaco, Luanda, Belas e Viana) para os actuais 9 municípios, estes tribunais
actuarão dentro da província.
Teremos depois os Tribunais da Relação que serão tribunais de segunda instancia, apreciarão os recursos dos tribunais de comarca, estes terão uma circunscrição de âmbito provincial podendo, no entanto, abranger mais do que uma província, e por fim o Tribunal Supremo que vai apreciar recursos sobre matérias de direito.
Enfim teremos um sistema de justiça não completamente desapegado do anterior sistema unificado, pois continuaremos com as salas de especialidades e não com tribunais em si autónomos, como por exemplo os tribunais administrativos, fiscais e marítimos como prescreve a constituição mas já será um sistema diferente do sistema unificado.
A grande novidade será também o facto de os tribunais de comarca passarem a ter competências mais amplas do que as dos anteriores tribunais municipais que estavam bastante limitados quer em matéria cível quer em matéria penal. A divisão judicial já não terá necessariamente que coincidir com a divisão político-administrativa como acontece no sistema unificado de justiça.





quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Três anos de Constituição da República Angola




Três anos de Constituição da República de Angola (I)

Completamos no passado dia 5 de Fevereiro três anos desde que aprovamos[1] a Constituição da República de Angola. Recorde-se que essa data (5 de Fevereiro), é a da promulgação e publicação da Constituição no Diário da República, nº 23, Iª Série, no ano 2010, depois da sua aprovação pela Assembleia Constituinte no dia 21 de Janeiro e depois ainda de ser apreciada pelo Tribunal Constitucional para efeito de fiscalização preventiva de Constitucionalidade[2] no dia 30 de Janeiro e novamente apreciada e aprovada pela assembleia nacional no dia 3 de Fevereiro de 2010. Essa referência às datas é importante, pois tratando-se de um acto histórico em volto em muitas datas, torna-se necessário saber o que aconteceu em cada data.
A actual constituição da República de Angola é como refere o seu preâmbulo
o culminar do processo de transição constitucional iniciado em 1991,  com a aprovação, pela Assembleia do Povo, da Lei n.º 12/91,que consagrou a democracia multipartidária, as garantias dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos e o sistema económico de mercado, mudanças aprofundadas, mais  tarde, pela Lei de Revisão Constitucional n.º 23/92.” (Constituição da República de Angola, Diário da República, nº 23, Iª série, de 5 de Fevereiro).
Ou seja a partir de 1991 Angola começou uma nova fase no seu percurso político-constitucional rompendo o cordão umbilical que o ligava ao regime marxista-leninista estatuído depois da independência. Estabeleceu um regime político mais pluralista e uma economia mais baseada no mercado do que no centralismo. Isso tudo foi, no plano jurídico, implementado através de uma revisão constitucional (Lei 23/92) que na opinião de Marcelo Rebelo de Sousa mais não era do que uma Constituição provisória. Entre nós a lei Constitucional de 1992 foi a nossa Constituição de transição, pois apesar de ela ser considerada revisão constitucional, ela foi, em bom rigor, uma constituição nova, pois há uma visível descontinuidade[3].
Radiografando a nossa nova constituição ela é composta por 8 títulos, 19 capítulos, 18 secções, 244 artigos e três anexos. O título I que trata dos princípios fundamentais é composto de 21 artigos, o titulo II trata dos direitos e deveres fundamentais e contém três capítulos (princípios gerais; direitos, liberdades e garantias fundamentais e o ultimo capitulo sobre direitos e deveres económicos, sociais e culturais) e 66 artigos que vão do artigo 22 ao artigo 88. Esta é a parte que podemos considerar inovadora da nossa Constituição pois além do rol de direitos fundamentais nela contidos, estabelece normas que podemos encontrar em qualquer constituição moderna, há um melhor tratamento dado aos direitos fundamentais e aos mecanismo da sua defesa se o compararmos com a anterior constituição.
O título III trata da Organização Económica, Financeira e Fiscal, e composto por dois capítulos (princípios gerais, sistema Financeiro e Fiscal), neste título encontramos normas sobre a organização económica do Estado Angolano, o papel do estado na economia, o modelo de economia (economia de mercado e não a economia centralizada como foi antes de 1991, art. 89, c)), neste titulo o papel do Banco Nacional Angola no sistema financeiro angolano, matéria que depois é desenvolvida pela lei infraconstitucional ou seja a chamada lei ordinária (lei 16/10), nesta parte da constituição também são lançadas os pilares sobre o sistema fiscal e tributário, como por exemplo como devem ser criados os impostos, e algumas normas sobre o OGE. Este título contém 16 artigos que vão do artigo 89 ao artigo 104.
O título IV é o mais longo da constituição contém 4 capítulos e 92 artigos que tratam da Organização do Poder do Estado, esta parte da constituição é chamada, doutrinariamente, de constituição Política por tratar de questões eminentemente política, ou seja aborda a organização política do Estado. O primeiro capítulo tem como epigrafe princípios gerais onde nos é dado a conhecer os órgãos de soberania (Presidente da República, Assembleia Nacional e os Tribunais) que passaram a ser três em vez de quatro como era na lei constitucional. No segundo capítulo nos é dado informação sobre o poder executivo do Estado[4], a sua extensão e os seus limites, o seu titular, o modo do seu exercício e outras questões inerentes a este poder. Capítulo III desenvolve a matéria sobre o poder legislativo, cuja função é produção de leis para o pais, o órgão que exerce esse poder (Assembleia Nacional), a sua definição, estrutura, composição e eleição. O capítulo IV e último deste título IV debruça-se sobre o poder judicial, órgão do Estado encarregue de julgar isto dirimir conflitos de interesses públicos ou privado. Neste capítulo encontramos a tipologia dos tribunais (tribunal constitucional, tribunal supremo, tribunal de contas e supremo tribunal militar sem prejuízo de existências de outros tipos tribunais). Esta Constituição traz também inovações neste aspecto ao consagrar artigos que falem sobre a advocacia como uma instituição essencial a justiça o que não aconteceu com a lei constitucional.
 Não gostaria de terminar a abordagem desse título sem falar da inovação polémica que a Constituição traz. Essa inovação chama-se modelo de eleição do presidente da República, titular do poder executivo. O artigo 109 que tem como epigrafe estabelece no seu número 1: ” é eleito presidente da República e Chefe do Executivo o cabeça de lista pelo circulo nacional, do partido político ou coligação de partidos políticos mais votados no quadro das eleições gerais, realizadas ao abrigo do artigo 143º e seguintes da Constituição”
Segundo esse artigo que introduz um modelo que não figurava em nenhum dos projectos de constituição dos partidos políticos que participaram na feitura da actual Constituição, e sabe-se lá como entrou nos três projectos postos a discussão e consulta pública, e denominado pelo presidente da República de modelo atípico só podem ser candidatos a presidente da República pessoas ligadas a partidos políticos, extinguindo-se dessa forma as candidaturas independentes. Penso pessoalmente que nesse aspecto houve um recuo, apesar de reconhecer a estabilidade política que este modelo proporciona, pois a eleição do presidente fica muito partidarizada e deixam o eleitor sem escolha e é mesmo até uma ofensa ao princípio da separação de poderes no que se refere a eleição dos órgãos que são titulares desses poderes (executivo e legislativo).
Continuando a radiografar a nossa Constituição temos depois o título V que trata da Administração Pública, enquanto conjunto de órgãos e serviços do Estado e demais pessoas colectivas públicas que visam a satisfação das necessidades da população, como a segurança, a saúde e o bem-estar. Este título é composto por 5 capítulos e 15 artigos.
O título VI composto por três capítulos (princípios gerais, autarquias locais e instituições do Poder tradicional)e 13 artigos trata do Poder Local, este poder local implica a autonomia local que mais não é que “a capacidade efectiva de as autarquias locais gerirem e regulamentarem, nos termos da Constituição e da lei sob sua responsabilidade e no interesse das respectivas populações, os assuntos públicos locais”[5].
De recordar que Angola, desde a independência sempre dedicou na sua Constituição artigos sobre o poder local mas na prática esse poder local nunca foi institucionalizado, o Estado apoderou-se de tarefas incumbidas a um ente administrativo infra estadual e há uma resistência em devolver esse poder, essa função a esses entes e o que é pior, é que elas ( autarquia local) nunca foi criadas, as suas funções são exercidas por órgãos do Estado desconcentrados do poder central (governos provinciais). Espera-se que depois das eleições gerais haja eleições autárquicas para a efectivação desse estipulado constitucional. Ainda neste título encontramos  a institucionalização (pelo menos a nível da Constituição) do poder tradicional, como um poder que coexiste como o poder estadual e local, poder este que também, tal como o Estado, cria normas aplicáveis às comunidades tradicionais que têm o mesmo peso que as normas jurídicas positivas e devem ser respeitados pelas entidades públicas e privadas.
O título VII e penúltimo da Constituição composto por 2 capítulos (Fiscalização da Constituição e Revisão Constitucional) e 12 artigos trata das garantias da Constituição ou seja dos meios de defesa da própria constituição que são nomeadamente a fiscalização ou controlo da Constitucionalidade e a revisão da Constituição. Através do primeiro previne-se e reprime-se vícios (normas contrárias a Constituição) que a possam afectar. E através do segundo estabelece-se um conjunto de elementos relativos a matéria, tempo e circunstâncias em que se pode ou não alterar ou rever a constituição.
O último título (VIII) da Constituição trata de normas finais e transitórias, isto é de normas que regula a transição de um momento constitucional para outro, bem como normas que estabelecem o início da vigência da constituição.
Por fim temos três anexos relativos os símbolos da República nomeadamente a Bandeira nacional, a Insígnia e o Hino Nacional.
Na segunda parte deste artigo me esforçarei em trazer um estudo sobre a evolução histórica da nossa lei mãe desde a primeira Constituição, as diversas revisões que lhe foram feitas, a grande revisão de 1991 e 1992 e a mais subsídios sobre o processo de aprovação da actual Constituição.
Espero ter ajudado a conhecer mais  a nossa constituição. Um abraço!!!




[1] Digo aprovamos porque apesar de toda a contradição que possa haver na aprovação de uma constituição, como foi o nosso caso em que uma parte da oposição retirou-se da sala no momento da aprovação da constituição, ela é aprovada pelo povo pois os deputados à assembleia nacional representa todo o povo angolano.
[2] Importa dizer que a fiscalização da Constituição consistia fundamentalmente em verificar a sua conformação com os limites materiais estabelecidos na lei constitucional de 1992, na altura vigente
[3] Esta é também a posição assumida pelos constitucionalistas angolanos, Adérito Correia e Bornito de Sousa Cfr. Angola – História Constitucional, Almedina, p. 31; e Raul Araújo Cfr. A sua Tese de Doutoramento publicada pela Casa das ideias sob o Titulo: O Presidente da República no Sistema Político de Angola, p. 342 e 343.
[4] Importa realçar que a teoria da divisão e separação dos poderes do Estado (poder executivo, legislativo e judicial) desenvolvida pelos filósofos iluminista do qual se destaca Montesquieu é, amplamente, aceite e encontramo-la em muitas constituições modernas, não sendo excepção a constituição da República de Angola.
[5] Este conceito de autonomia local presente na nossa Constituição (art. 214) é mesmo adoptado pela Carta Europeia de Autonomia Local ratificada por grande parte dos países europeus dentre os quais Portugal através do decreto presidencial 58/90 de 23 de Outubro.