terça-feira, 26 de junho de 2018

A Tutela Administrativa sobre as Autarquias Locais em Angola (análise da proposta de lei em consulta pública)


  1. Introdução

O pais entrou desde a eleição do presidente João Lourenço numa rota rumo a institucionalização das autarquias que não tem volta. Falar de autarquia em Angola, hoje, já é  falar do assunto que mais presença faz nas bocas, nas reuniões e em qualquer outra parte em que haja algum assunto para se discutir, eu iria mais longe, está na moda falar das autarquias.

Fora este pequena introdução, o que pretendo mesmo neste pequeno artigo é falar do modelo de tutela administrativa subjacente na proposta de lei da tutela administrativa, uma das seis leis do pacote legislativo autárquico que está neste momento em consulta pública, antes de passar pelo crivo da Assembleia Nacional.

Procurarei neste pequeno artigo discorrer sobre o que doutrina define como sendo a tutela administrativa, como a classifica, e depois fazer um enquadramento doutrinário do modelo de tutela contido na proposta em consulta.

    1. Conceito

A tutela administrativa segundo Freitas do Amaral  consiste “no conjunto dos poderes de intervenção de uma pessoa colectiva pública na gestão de outra pessoa colectiva, a fim de assegurar a legalidade ou o mérito da sua actuação[1]. Carlos Feijó (2001) considera que por se tratar de uma intervenção de uma pessoa colectiva pública na gestão de outra pessoa colectiva, isto por si só constitui já um limite a descentralização administrativa e no contexto dessa nossa abordagem um limite a autonomia local corporizada pelas futuras autarquias locais.

Não menos importante também é dizer que sendo o nosso estado um estado unitário como estipula a constituição no seu artigo 8 não é defensável a implementação das autarquias locais, enquanto uma das entidades que corporizam o poder local, com ausência de tutela pois como nos alerta Feijó “a ausência de tutela administrativa do Estado, no âmbito de um estudo unitário, sobre poder local autónomo é um meio - caminho para a federalização do país”.

    1. Classificação da tutela

A tutela administrativa pode ser classificada quanto ao seu fim e quanto ao seu conteúdo.

Quanto ao fim a tutela administrativa classifica-se em:

  1. Tutela de legalidade
  2. Tutela de mérito

A tutela de legalidade é a que visa controlar a legalidade das decisões das entidades submetidas a tutela, ou seja a entidade tutelada.

A tutela de mérito é a que visa controlar o mérito das decisões da entidade tutelada.

Mas na prática o que é tutela de legalidade e o que é tutela de mérito? E como distinguir uma da outra?

Imaginemos que uma vez institucionalizadas as autarquias, a autarquia de Luanda por exemplo decida criar impostos locais para tributar os munícipes. A intervenção do executivo para averiguar a legalidade desta decisão, é uma tutela de legalidade pois o objectivo será apurar a conformidade desta decisão à lei, se esta decisão está ou não conforme à lei.

Mas já não será o caso quando se tratar da intervenção do executivo para controlar se a decisão da autarquia é ou não conveniente, se  é ou não oportuna, independentemente de ser ou não legal. Ai se estará perante uma tutela de mérito pois o objectivo será averiguar questões que não têm a ver com a legalidade, mas com outras questões.

Quanto ao conteúdo a tutela administrativa, seguindo de perto os ensinamentos de Freitas do Amaral,  desdobra-se em cinco modalidades:

  1. Tutela integrativa
  2. Tutela inspectiva
  3. Tutela sancionátoria
  4. Tutela revogatória
  5. Tutela substitutiva


  1. Tutela intregrativa

A tutela integrativa é a que consiste no poder de autorizar ou aprovar os actos da entidade tutelada. Neste sentido teremos dentro da tutela integrativa dois tipos de tutela: a tutela integrativa a priori e a tutela intergativa a posteriori. A primeira é a que consiste em autorizar a prática de actos da entidade tutelada, e a segunda é a que consiste em aprovar actos da entidade sob tutela.

Este tipo de tutela levanta dúvida em termos de conceitos, pois o que é uma autorização e o que aprovação no âmbito deste estudo? E como distinguir uma da outra?

A distinção consiste nisto: quando um acto está sujeita a autorização significa que a entidade tutelada não pode praticar o acto sem primeiro obter a devida autorização; se o acto estiver sujeito a aprovação, a entidade tutelada pode praticar o acto antes de obter a aprovação, todavia não pode pô-lo em prática, não pode executá-lo, sem que esteja aprovado.

Por outras palavras diriamos que na tutela administrativa integrativa a priori (autorização) “o exercício da tutela administrativa é condição do exercício da competência da entidade tutelada[2]” e na tutela integrativa a posteriori o exercício da tutela “é condição para dar executoridade do acto praticado pela entidade tutelada[3]



  1. A tutela inspectiva consiste no poder de fiscalização dos órgãos, serviços, documentos e contas da entidade tutelada ou seja no poder de fiscalização da organização e funcionamento da entidade sujeita a tutela.
  2. A tutela sancionatória consiste no poder de aplicar sanções por irregularidades que se tenha detectadas na entidade tutelada.
  3. A tutela revogatória, por sua vez, é o poder revogar os actos administrativos praticados pela entidade tutelada.
  4. A tutela substitutiva é o poder da entidade tutelar de suprir as omissões da entidade tutelada, praticando, em vez dela e por conta dela, os actos que forem legalmente devidos.


  1. A tutela administrativa na Constituição da República de Angola

Da leitura  que se pode fazer do artigo 221 da CRA é possível concluir que o legislador constituinte  evitou consagrar no texto constitucional a tutela de mérito, ou seja a tutela de mérito não encontra acolhimento na constituição angolana.  O nº 2 do referido artigo diz “ a tutela administrativa sobre as autarquias locais consiste na verificação do cumprimento da lei por parte da dos órgãos autárquicos (...)”. este enuciado é uma consagração expressa e inequívoca da tutela da legalidade. Por isso seja qual for o fundamento que proponente de lei use para a inclusão da tutela de mérito na realidade juridico-administrativa angolana, irá sempre embater contra a constituição e ser declarada inconstitucional pelo tribunal constitucional.

Nos termos ainda do mesmo artigo o órgão tutelar é executivo, ou seja é o presidente da república tendo em conta que o actual sistema político consagra um executivo pessoalizado, e não colegial como o era na lei constitucional de 1992. 

O número três do mesmo artigo estabelece, em nossa opinião, limite a dissolução dos órgãos autárquicos, ao condicioná-la ao grau de gravidade das acções ou omissões praticadas por estes órgãos. A dissolução fica assim dependente do grau de ilegalidade, só havendo dissolução caso haja ilegalidade graves nas acções dos órgãos autárquicos.

O número 4 do artigo 221 estabelece as garantias que as autarquias têm diante do órgão tutelar, no caso o executivo. Essa garantia resume-se em impugnar judicialmente as acções que órgão tutelar que considere serem ilegais. Esta garantia também é reforçada pelo artigo 216 que estabelece as garantias das autarquias, neste artigo entendemos que se estabelece as garantias fora do âmbito da relação jurídica tutelar, já que as garantias não podem ser vistas apenas pelo foco da relação tutelar.



  1. A tutela administrativa na proposta de lei da tutela administrativa sobre as autarquias locais

Uma vista geral da proposta de lei oferece-nos a priori os “traços característicos” da tutela que teremos sobre as autarquias locais, caso passe pela Assembleia Nacional sem sofrer alterações substanciais.  Ela será, quanto ao fim, uma tutela da legalidade (art. 3º), e também de mérito (art. 17), quanto ao conteúdo será uma tutela inspectiva (art. 4), sancionatória (art. 8), integrativa (art. 15), subtitutiva (art. 18 e o nº 3 do art. 15) e a tutela revogatória (art. 17)

A tutela inspectiva prevista na proposta é feita através de inspecções, inquéritos e sidicâncias (nº 1 do art. 4) que acreditamos que venha a ser feito pelo MATRE ou pelo MAPTESS ou conjuntamente pelos dois por delegação de poderes do Presidente da República.

A tutela integrativa é uma tutela a posteriori feita por meio de ratificação tutelar (art. 15 e 16) e pela natureza dos documentos sujeitos a atificação serão, em nossa opinião, os ministérios das Finanças, da Economia e desenvolvimento, e o do urbanismo e habitação os titulares desse poder depois da competente delegação de poderes.

As tutelas de mérito, substitutiva e revogatória são consagradas na proposta a título excepcional e transitório. Resta-nos aqui saber até que ponto a inclusão de norma a título excepcional e transitório pode ficar imune a inconstitucionalidade. O que defendemos é que os deputados solicitem um controlo preventivo junto do TC caso pretendam afastar  a  constitucionalidade da norma que fere a constituição e caso não o consigam antes da aprovação, podem sempre fazê-lo a posteriori através do controlo sucessivo.

Dos tipos de tutela reconhecidos a nivel doutrinal, a proposta fez questão de usar todos, o que significar dizer que teremos, se aprovado assim como está, um regime de tutela administrativa sobre as autarquias locais muito intenso, e que vai de certa forma beliscar o princípio da autonomia local consagrado no artigo 214 da Constituição.

Esse regime de uma intensa tutelada administrativa na primeira fase da implementação das autarquias é defendido pelo Doutor Feijó que já o perspectivava em 2001  nos seguintes termos:

Assim, numa primeira fase, a tutela administrativa poderá ser mais intensa para assegurar e proteger melhor bens como a unidade nacional e o desenvolvimento harmonioso do País. Na verdade um país que sai de um sistema centralizado e sem tradição municipalista para um sistema descentralizado e autónomo não deve seguir outra opção[4].”

Independentemente do bondade do doseamento da tutela por fase defendido pelo doutor Feijó, entendo que o respeito pela Constituição deve estar acima de qualquer intensão legislativa ou administrativa, por isso é de afastar a tutela de mérito e a tutela revogatória da proposta de lei.





BIBLIOGRAFIA

  • ANGOLA. Constituição (2010). Constituição da República de Angola: promulgada em 5 de Fevereiro de 2010. Luanda. Imprensa Nacional – EP, 2010.
  • FEIJÓ, Carlos Maria. A Tutela Administrativa sobre as Autarquias Locais (Perspectivas futuras). Disponível em
  • FREITAS DO AMARAL, Diogo. Curso de Direito Administrativo.  Vol. I. 3ª edição
  • MATRE. Proposta de Lei da Tutela Administrativa sobre as Autarquias Locais. Disponível em www.mat. gv.ao







[1] FREITAS DO AMARAL, Diogo. Curso de Direito Administrativo.  Vol. I. 3ª edição. p. 880.
[2] FREITAS DO AMARAL, Diogo. op. cit. p. 885.
[3] Idem.
[4] FEIJÓ, Carlos Maria. A Tutela Administrativa sobre as Autarquias Locais (Perspectivas futuras). Disponível em https:// library.fes.de/pdf-files/bueros/angola/hosting/feijo.pdf e também https://carlosfeijo.co.ao/site/2001/tutelaadmincf/ acesso em 23/06/2018.